sábado, 9 de agosto de 2014

Falando das minhas Frustrações

Deixar-se ser parida para evitar o "pior" ou: Fugir do doutor e parir em paz?

Falar sobre o nascimento da minha filha não é uma tarefa simples. Embora tenha tido um parto até bem satisfatório se comparado com os muitos que vemos por aí. Tenho que confessar que esse momento me deixou uma lacuna no coração. E particularmente para mim, não foi tão satisfatório assim. Apenas para o doutor, o hospital, a equipe e a sociedade que só conhece um modelo de obstetrícia falido o parto foi um sucesso. Para mim, não!

Foi um parto “normal” hospitalar, e talvez isso diga muito à respeito do desenrolar das situações – Parto hospitalar. Não foi ruim, essa não é palavra, ou talvez tenha sido ruim. Sim! Foi ruim. Mas apenas hoje tenho consciência disso, e percebo que os acontecimentos não corresponderam ao que eu vejo hoje como algo bom. Para o que eu imaginava naquela época de fato não foi ruim, ninguém morreu, não tive um bebê com sequelas por ter nascido pela vagina da mãe, o doutor fez seu trabalho, e nós ficamos bem depois. Ou quase. Manuela teve uma espécie de "edema" no olho esquerdo, externamente, devido ao fórceps.

Eu pouco sabia sobre a realidade atual da nossa assistência obstétrica quando minha filha nasceu, sobre os índices lamentáveis de cesarianas, sobre como somos massacradas dentro de maternidades, e como perdemos a força e a autonomia nesses ambientes inóspitos. Tudo que eu sabia é que eu queria um parto normal, não importava à que custo. Eu não queria uma cirurgia, pois na minha cabeça, se havia um modo não invasivo de um bebê nascer não havia necessidade de me submeter à uma cirurgia. Mas era só isso que eu sabia. Então, naquela época, era difícil definir um parâmetro para calcular se o meu parto havia sido bom ou ruim. Superficialmente, se analisado e comparado com os muitos partos que acontecem Brasil à fora, de fato foi bom. Das violências que sofri, as quais só tomei conhecimento mais tarde, à única que me saltou aos olhos na época, foi a separação da minha cria de mim.

No que diz respeito à minha “satisfação” com o parto para àquela época, naquele momento eu estava relativamente satisfeita, embora soubesse que aquele processo havia falhado em algum ou vários momentos, mas não sabia delimitar nem quando e nem como. Então, embora sentindo no fundo da alma que aquele tipo de parto não era o ideal, eu ainda acreditava que fora bom.

Durante o trabalho de parto recebi apoio da equipe de enfermagem, pude contar com a presença do meu marido o tempo todo, e a enfermeira que me acompanhou durante toda a madrugada era quase uma doula pra mim. Me apoiava, me encorajava, me animava, me dizia que eu era capaz naqueles momentos em que a dor das contrações me faziam xingar até o último fio de cabelo de Eva que pecou e fez com que Deus ordenasse: “Parirás com dor.” Eva maldita!  (Para descontrair... rs...) Ela foi uma anja em minha vida aquela santa enfermeira. Se recusava à fazer exame de toque, e colocava o coraçãozinho da minha bebê pra eu ouvir e me acalmar.
  
Eu não tive uma doula, não conhecia o trabalho maravilhoso dessas mulheres naquela época. Mas aquela enfermeira fora minha anja guardadora, ela me amparou e me fez não desistir do que eu mais desejava: um parto por via vaginal. Porque houveram momentos, eu confesso, que eu quis desistir. Por falta de informação, por achar que não aguentaria, por não conhecer a potência do meu corpo, por não saber dos direitos que tenho sobre ele, por não conhecer minha valentia e força como mulher, por não ter me preparada para aquele momento como devia.

E então eu não pari. Fui parida.

Naquela época, o que importava pra mim é que minha filha saísse por onde entrou. Como isso aconteceria, não fazia muita diferença. Eu achava mesmo que tinha que ser como o médico achasse melhor, e não como eu sentia que poderia ser, ou como o meu corpo fizesse no momento dele, na hora certa, do jeito certo. Eu nem sabia que era capaz. Aliás eu se quer podia "medir" o "jeito certo", eu nem o conhecia. Eu conhecia partos normais e cesáreas, e sabia que não queria uma cesárea, e só!

Lá pelas 6 horas da manhã, após mais ou menos 8 horas e meia de bolsa rota, e em trabalho de parto ativo, debaixo de um chuveiro numa cadeirinha de parto (por incrível que pareça o hospital tinha uma dessas), eu senti uma pressão forte na pelve, e muita, muita vontade de fazer força. Eu já estava cansada, e com muita dor. Mas por um impulso, rapidamente me abaixei no chão, em cócoras, e pedi ao meu marido que chamasse a santa enfermeira. Ficar de cócoras foi um impulso instantâneo, não intencional, que me veio como um ato natural. Nem eu mesma sabia explicar porque tinha me abaixado ali daquele jeito.

A enfermeira veio com uma outra enfermeira me explicando que o plantão dela estava acabando e que a outra iria ficar comigo, mas que eu poderia ficar tranquila, porque essa outra iria cuidar muito bem de mim, naquele momento eu senti medo, e quase pedi para que ela ficasse mais um pouco, mas me segurei. Ela se despediu, me desejou boa sorte e disse: “Acredite! Você pode!”. A outra enfermeira, uma nova santa em minha vida, ficou comigo no banheiro, e eu pedi para verificar minha dilatação, e que surpresa boa: Dilatação total! Bebê um pouco alto e colo um pouco grosso, mas estava quase lá. Ela me olhou e disse: “Você está quase lá! Só mais um pouquinho e seu bebê vai estar aqui”. Eu pedi para ficar ali, abaixada, e ela consentiu.

Acontece que chegou o doutor. E chegou já me chamando pra deitar na cama pra ver minha dilatação, e eu? Obedeci é claro. Era o doutor afinal.  Quando eu deitei, senti que a pressão que estava sentindo na pelve passou. Aí o doutor disse que o bebê estava alto e o colo um pouco grosso, mas eu já poderia tentar fazer força. Tentar fazer força? Eu queria ter ficado lá no chuveiro um pouco mais, algo me dizia que ali a coisa fluiria melhor:

- Doutor não posso ficar mais um pouco no chuveiro? Me sinto melhor lá!

- Não precisa disso não mãe! Vamos pra sala de parto fazer esse bebê nascer. (Fazer esse bebê nascer?)

Fui andando. E lá começou minha tortura. Deitei numa cama larga, com barras de ferro e me mandavam fazer força segurando na barra de ferro... "Força comprida", gritava uma doutora na porta da sala de parto, enquanto uma enfermeira me furava procurando minha veia. "Mas tem que ser na mão?" eu questionei, e a enfermeira com pena: "Ai "fia", não tô achando outra! Desculpe mesmo!". E eu fazia força, a tal força comprida até quase perder os sentidos. Eu não conseguia mais. Foram longos minutos, nem sei bem quantos, uma hora inteira talvez.

O doutor enfiou as mãos em mim me causando imenso desconforto e dor, na frente pessoas que eu nunca tinha visto na minha vida (a sala estava cheia de gente), na frente do meu marido, virou a minha filha, e eu nem sei bem porque. A enfermeira santa, tinha uma feição de: "Não faz isso aí não doutor." Enquanto segurava minha mão, e me dizia: "Confia, você consegue." Mais força, e então o doutor disse: “Bebê muito alto! Vamos para o centro cirúrgico já”. Vamos para o centro cirúrgico? Como assim?

Antes disso tinham me colocado soro, e eu nem havia percebido, mas era a temida ocitocina sintética. A dor se atenuou com o “sorinho”, e eu gemia incontrolavelmente. Eu fui pelos corredores implorando para não fazer cesárea, aos prantos, desesperada, assustada, intimidada e com muita dor. A enfermeira me olhava com pena, e dizia baixinho: “Calma, fica calma! Vai ficar tudo bem! Confia.”

No centro cirúrgico chamaram o Anestesista, e o doutor pediu que ele me aplicasse a raqui caso precisasse de cesárea. (Cesárea????)

- Não doutor, eu não quero cesárea. Eu quero parto normal. Tem alguma coisa errada? Eu não posso ter parto normal?

- Fica calma mãe! É só um procedimento padrão para sua segurança. A anestesia vai te ajudar a relaxar, e vamos tentar mais um pouco ok? (Respondeu rispidamente, faltando pouco me mandar calar a boca.)

Anestesia aplicada, a dor sumiu instantaneamente. Confesso que senti um alivio. Foi então que notei: Cadê meu marido? Ele não tinha entrado ainda.

Mais força. Puxo dirigido, dessa vez necessário, pois devido à anestesia eu não sentia mais as contrações. A enfermeira anja segurava minha mão, enquanto eu implorava pelo meu marido. “Chamem meu marido, quero que ele esteja aqui quando ela nascer!” O doutor me ignorava, a enfermeira anja pedia para todos os seres que rondavam aquele centro cirúrgico (que momento horrível, um monte de estranhos me olhando naquela posição de tamanha submissão e exposição). Até que ela larga minha mão e vai ela mesmo pedir para mandarem meu marido entrar, eu ouvi quando ela disse: “Chamem o marido da gestante, ela tem direito de que ele esteja aqui.” (Ah essa enfermeira anja!!!) Mas ainda antes dele entrar, o pediatra chegou, e o doutor discutiu com ele o fórceps. Isso não era uma opção para mim, mas naquele momento eu estava entregue, e eu juro que só queria que minha filha saísse bem daquilo tudo, foram momentos de muita tensão, angustiante, então se o fórceps ajudaria no processo, que assim fosse. Ambos concordaram, o pediatra e o doutor. Mas e eu? Ninguém me perguntou. Então, que assim fosse... E foi!

Me cortaram, sem que eu soubesse, e tiraram minha filha à ferro de mim, no momento em que meu marido estava entrando na sala. Pelo menos deu tempo ele ver ela chegar ao mundo, embora de uma forma fria e violenta. Embora diferente do que eu tinha imagino. Embora tendo ficado assustado com a brutalidade que ela fora "arrancada" do meu útero.

Fui parida! E ela fora nascida. 

De forma brutal, violenta e assustadora. Ela não chorou, não "respirou" (assim disse o doutor) e eu tive que fazer isso por ela, para ela receber oxigênio pelo cordão, que estava enrolado no pescoço. "Respira fundo mãe! Respira! De novo." Meu único conforto era ver o pediatra, que foi meu pediatra e de meus irmãos, e é alguém em quem confio muito. Ele falava comigo me chamando pelo nome, ele me conhecia afinal. Ter alguém se dirigindo à mim me chamando pelo meu nome era reconfortante, e me passava segurança. A circular de cordão, desculpa dada pelo doutor para o parto “difícil”, foi também o que ele usou como muleta para me amedrontar. (Parto difícil? Nem deu tempo eu pensar, e já estava no centro cirúrgico. Sempre ouvi dizer que partos são demorados, mas quando finalmente entrei na partolândia, fui parar num centro cirúrgico. Qual é o parâmetro para se “medir” um parto difícil? Circular de cordão não pode ser!)

- Ela podia ter morrido sabia mãe? Nasceu com circular de cordão. Isso podia ter matado ela.

Eu não sabia! Não sabia mesmo que cordão matava. Porque evidências científicas mostram que circular de cordão não mata bebê. E disso eu sabia, essa informação eu tinha! Respondi à ele friamente:

- Não sabia não doutor! Deus guarda os seus, e cordão não mata, não que eu saiba.
(De algum modo, com as poucas armas que tinha, eu lutei pelo pouco direito que havia me sobrado! O direito de ter meu marido comigo, o direito de não deixar o médico me enrolar. Embora timidamente, e sem voz ativa, mutilada por um sistema de obstetrícia falido, eu exigi o pouco direito que me sobrava, a presença do meu marido, e me atenderam, muito a contragosto, mas atenderam.)
Mas... Cadê minha filha? Aparataram-na de mim. Eu nem ouvi seu chorinho. Cortaram o cordão e levaram-na.

- Mas cadê ela? Está tudo bem? Ela está bem?

Meu marido e a santa enfermeira me acalmavam. "Ela está bem! Fica calma, o pediatra só foi examinar ela!" dizia a enfermeira. Os minutos mais longos da minha vida foram aqueles. Enfim o choro rouco ouvido de longe. Nota Apgar 7 e 9. (Cordão mata doutor? Não.. não mata não!) Finalmente a vi, linda, boquinha de coração. Mas... Levaram-na de novo: “Pra onde? Berçário? Precisa mesmo? Papai vai com ela, deixa eu aqui! Vai atrás dela.”

Ela nasceu as 7:30 da manhã, eu fui pra sala de recuperação devido à anestesia, e fiquei lá por mais de uma hora. Ansiosa, perguntava as horas pra todo mundo que passava por mim, a maioria me ignorava, ou dizia que ia ver e não voltava mais. Fui para o quarto por volta das 9 horas, e recebi finalmente minha filha, banhada, trocada, penteada. Naquele momento me dei conta de que algo tinha dado errado.

Ela estava bem, mas eu não! Porque precisei ficar longe dela todo aquele tempo, porque não deixaram que ela ficasse comigo logo no primeiro instante de vida, pele a pele, em contato direto com meu corpo como fora nos último 9 meses, porque não me permitiram conhecer minha filha já no primeiro instante de sua vida fora do útero. Isso retardou nosso processo de conhecimento. Isso me feriu. A ferida foi tão profunda que me impulsionou a buscar mais informação. Descobri um universo de coisas que não conhecia, meses depois de "quase parir", e entendi que o que eu sentia à respeito do meu quase “não parto” tinha fundamento, não era uma frustração boba.

Eu não tinha parido, eu fui apartada da minha cria. Levamos dias para nos “reconhecer”. Por sorte nos saímos muito bem nesse processo, e trilhamos com sucesso esse caminho juntas, dia-a-dia. A amamentação foi um sucesso desde a primeira sugada. Nas primeiras semana difícil para mim, mamilos fissurados, sangrando, mas eu persisti, perseverei, ela merecia isso. Para ela, foi um processo simples, a pega fora perfeita desde a primeira abocanhada. Mamou 3 horas seguidas no primeiro dia, o que fissurou meus mamilos. Mas nada paga aquele momento que vivi, com ela grudada no meu peito. Os primeiros instantes de reconhecimento.

Não é fácil admitir que meu “quase não parto” foi um fracasso, uma sucessão de situações que levaram à um desfecho não favorável nem a mim e nem à minha filha. Eu não precisava de fórceps, precisa de um chuveiro com água morna, de ficar abaixada ou em pé para contribuir com a gravidade, e não deitada em posição ginecológica. Eu precisava de tempo, paciência e respeito, do doutor e da equipe, precisava de apoio e incentivo e não de um médico que fazia tudo no meu lugar, sem nem me perguntar ou me deixar decidir se eu queria passar por aquilo ou não. Ele apenas seguia protocolos hospitalares, e fazia aquilo que ele julgava correto e salvador. Ele e sua equipe não tinham tempo para perder, havia outra gestante em trabalho de parto e ela ia parir a qualquer momento, e se eu não "parisse" logo, ia atrapalhar. Foi isso que senti.

Meu parto foi um fracasso, embora tenha sido um sucesso pro doutor. Ele se sentiu o herói que salvou uma vida, mas eu me senti um animal ferido, acuado, enjaulado, privado de sua liberdade. Para ele foi só mais um parto. Para mim foi uma ferida na alma.

O doutor não foi o herói, ele foi o algoz que sentenciou à morte o meu parto quase normal, que apartou de mim minha cria, que me violentou e me tirou o direito mais genuíno, minha autonomia sobre o meu próprio corpo.

Hoje falo no meu "quase parto" com menos pesar, embora ainda pese. Falo nessa história para esclarecer, que embora eu tenha recebido uma boa assistência no pré-parto, e isso faça parecer que eu não sofri violência obstétrica, a assistência obstétrica em si foi uma sucessão de agressões à minha integridade física e ao meu direito de decidir por mim mesma. A minha autoridade sobre o meu corpo foi anulada naquela maternidade. A ausência de diálogo, a decisão de anestesiar, de tirar a fórceps, de cortar meu períneo, todas feitas sem meu conhecimento e consentimento. A forma bruta ao me falar que minha filha poderia ter morrido, como se ter insistido num parto vaginal tivesse sido um absurdo, e como se algo tivesse dado errado a culpa seria minha.

Violência, mártires, pressão psicológica. Eu sofri isso tudo dentro do hospital, e é por isso que quando eu tiver outro filho, eu quero parir em casa, com uma doula e uma equipe que me respeite e apoie, e não que martirize e faça de mim objeto de uma assistência falida de obstetrícia, meu filho como produto de um nascimento vitorioso e o doutor como o autor do milagre do nascimento.

Ah! As enfermeiras anjas? Soube que uma delas, a segunda, acompanha partos domiciliar. E ela estará lá quando eu finalmente parir! Assim espero.

Parir... eu ainda posso! Eu quero e eu vou!

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