segunda-feira, 21 de julho de 2014

Caso Dr. Iaperi Araújo e de sua vitima sem rosto

Doutor vítima de sua própria ignorância, faz vítima de violência obstétrica, mais uma mulher brasileira.

Semana passada, li uma notícia esquisitíssima no G1, sobre uma mulher que teria comido a própria placenta, e agredido um médico durante o parto, e depois teria saído correndo nua pelos corredores para resgatar seu filho do berçário aos berros. O interessante foi o conjunto de fatos relatados sobre o ocorrido, e o desfecho tão, como poderia dizer? Tão estranho? Talvez não seja essa a palavra, mas não encontro outra para definir a situação. Aquela notícia me causou tamanha estranheza que eu mal conseguia imaginar tal cena. Não se engane, achando que a estranheza vinha do “comer placenta”. Não não! A estranheza vinha da dúvida sobre o desfecho “favorável” à vitimização do “doutor”, que deixava claro que havia sido ofendido. (?)

Enfim... Tudo me soou tão absurdo, que fiz uma busca pelo google para ler mais “notícias” de outras fontes sobre o caso. E fiquei realmente chocada com o que li. Eu que sou ativista defensora de partos humanizados, do direito da mulher sobre o próprio corpo, fiquei realmente perplexa diante do que os meus olhos liam em cada site que relatava o caso. Perplexidade, essa é a palavra. Não conseguia acreditar que aquela versão do doutor era a verdade “absoluta”. Até porque, todos nós sabemos que:

1º A verdade sempre terá mais de uma face, na minha opinião, no mínimo 3: A de um lado, a de outro lado e a versão dos outros. Há quem diga que há uma quarta face, que seria a verdade genuína. Mas há pontos de vistas, e então, não existe verdade genuína, existe a verdade segundo o ponto de vista. Porém, nesse caso, eu acredito que uma versão, a da verdadeira vítima seja a real.

2º Sabemos que hoje, no Brasil, há índices lamentavelmente elevados de cesarianas sem indicação, as chamadas “eletivas”, bem como convivemos diariamente com cenas absurdamente trágicas e tristes de violência obstétrica. 

Inicialmente, eu só encontrei a versão do tal “doutor”, Iaperi Araújo. E de imediato, não tendo outra versão, eu fiquei abismada, e até a “imaginar” coisas que “esboçava” minha perplexidade diante do caso de uma suposta comedora de placenta que nem sequer havia feito pré-natal. Mas a essa mesma imaginação, ia e vinha em devaneios e dúvidas. Será que ela não teria mesmo feito o pré-natal? Será?

Como uma “boa ativista”, que lê muito, e já viu relatos de casos e mais casos de violência obstétrica, imediatamente, eu duvidei. Será mesmo que essa gestante, não tinha feito pré-natal? Será mesmo que a versão do “doutor” era a verdade absoluta? Será mesmo que ela o agrediu verbalmente gratuitamente, como ele disse? Todas essas dúvidas se abateram sobre mim, instantaneamente. Como se eu pudesse “sentir” que algo ali estava errado. Algo cheirava mal. Bem sabemos que, uma gestante quando dá entrada num hospital, provinda de uma tentativa frustrada de parto domiciliar assistido / planejado, a equipe médica não as recebem exatamente “bem”.


Fui lendo as notícias, me questionando constantemente sobre os dizeres do obstetra, que lamentava toda a pressão sofrida, a ponto de não querer mais fazer partos. Fiquei perplexa, aquela cena toda descrita por ele, me parecia tão chocante, que eu não podia acreditar que era real. Mas era... Embora distorcida pela visão do “profissional ferido moralmente”, que a fazia parecer surreal. Mas ao saber a versão da parturiente, a história finalmente me pareceu mais real. Do ponto de vista “espetaculoso” do “doutor” parecia mesmo coisa de cinema. Mas do ponto de vista de uma gestante que sofrera a forma mais intensa da violência obstétrica, era só mais uma quadro triste e lamentável de violência contra a mulher, e a cena deixava de ser surreal, e passava retratar de modo trágico, mais um episódio violento dentro de uma maternidade brasileira.
A minha perplexidade ao ler as notícias aumentava, e mais dúvidas rondavam a minha mente sobre o desabafo do obstetra. Aquela sensação de enorme mal entendido sobre o que devia realmente ter acontecido, e a possível incoerência na divulgação dos “fatos” feita pelo doutor em forma de desabafo em rede social me deixavam angustiada.

O que poderia ter realmente acontecido dentro daquele ambiente hospitalar? Como a parturiente deveria ter se sentido? Provavelmente acuada, amedrontada diante do improvável, do incerto, de algo que fugia a tudo que ela tinha planejado e desejado para si. Essa era a única possível explicação que me vinha à mente e que justificaria a cena narrada pelo doutor. Certamente, como boa parte de nós, adeptas ao parto humanizado, ela recebeu muita informação, da qual ela se “apoderou”, e diante de uma situação que exigia a ida durante um trabalho de parto para um hospital, certamente ela temeu que acontecesse com ela, o que ouvimos por aí que acontece dentro de ambientes hospitalares no período de trabalho de parto, parto e pós-parto com grande parte das mulheres brasileiras “violência”.

E pasmem... ACONTECEU!

Imagem retirada da internet
Ela foi violentada, no sentido mais temido da palavra. Ela foi desrespeitada, foi agredida, foi mal tratada, foi “mutilada”, debocharam dela, gritaram com ela, a intimidaram, a coagiram, a impuseram um papel de “algoz”, sendo ela a possível autora de um desfecho ruim com o filho se algo desse errado. Mesmo sendo ela a vítima na mão de algozes ferozes, que em meio à sua soberba provinda de um diploma emoldurado na parede, sentiam-se no direito de terem direito sobre o corpo dela (Direito sobre o corpo do outro?). Fizeram dela um objeto qualquer, que não poderia ter vontade própria, não poderia exigir seus direitos. E ela reagiu! Do jeito que “dava”, como ela pôde, tentando resgatar algum resto de dignidade que lhe teria sobrado, após terem lhe tirado tudo, até mesmo seu filho.


Ao adentrar aquele hospital, ela perdia ali, toda a sua autonomia, sua capacidade de mulher, de ser humano, com um corpo saudável e perfeito. Ela perdia ali, naquela maca, a sua alma, sua energia, seu orgulho, sua força. Ela fora reduzida a um objeto, e lhe tiraram o que havia de mais precioso. E não apenas isto, o doutor lhe fizera de “escudo” ao tentar justificar um erro hediondo, se baseando nas reações dela, que lutava bravamente para se defender, feito um “animal ferido”.

Como disse Ligia Sena no Blog Cienstista que virou mãe: “não interessa outra voz além da dessas mulheres - entre as quais também me incluo”. Nenhuma voz agora importa, nenhum relato desse médico que tente o inocentar terá valor, apenas a versão dessa mulher violentada faz sentido. Algo nisso tudo deu errado, e não foi ela a culpada.

Naquele momento, eu só tinha a versão do médico, e não conseguia formar uma visão ampla das coisas. Eu precisava saber mais. Mas continuava perplexa, e nem mesmo eu acreditava naquilo. E estava certa, de algum modo. A voz daquela mulher sem rosto, e sem nome, que havia supostamente corrido pelos corredores nua em busca de seu rebento, depois de não ter feito pré-natal, ter ofendido o doutor e ter comido sua placenta estava perdida, mas eu precisava ouvi-la. Aquela versão do doutor não me parecia coerente. E não era... Não era mesmo!


Vítima de seus medos, ela se entregou nas mãos de uma equipe insana, que sem tempo para respeitá-la, limitou o seus direitos a “obedecer” ordens medíocres. Por medo, ela cedeu às ameaças, à pressão psicológica e traumática, sob pena de matar ali, seu próprio filho, sangue do seu sangue, carne da sua carne. Filho esse que não foi dela, porque lá dentro, naquele ambiente inóspito, onde fora ridicularizada e sofrera as maiores atrocidades possíveis e imagináveis que uma mulher parindo poderia sofrer, lhe fora negado o direito sobre o próprio corpo, e depois sobre o próprio filho. Aquele a quem concebeu e gestou, carregando em seu ventre inundado de amor durante nove meses. Aquele a quem ela deu seu sangue, e desejou de todo o coração. Negaram-lhe que ela pudesse escolher por ele, o que era melhor, negaram-lhe o direito de escolher por ela, o que era melhor.


Eu não demorei muito tempo para encontrar num blog que sigo (cientista que virou mãe) o relato dessa mulher sem rosto e sem nome, que sofrera coisas absurdas ao tentar parir seu filho. Palavras que transbordavam tristeza, decepção, amargura e dor. Uma versão muito mais intensa e real daquela cena que me deixara perplexa, Versão que deixava claro a atrocidade à que ela fora acometida. Palavras que transgrediam as do doutor, e que relatava com exatidão toda a dor que ela ainda está sentindo, por ter sido roubada, sufocada, humilhada.


Naquelas palavras, eu me vi, vivenciando o parto da minha filha há dois anos. Onde infelizmente não tinha tanta informação quanto ela, quase nenhum empoderamento, e por isso, fiquei entregue às mãos insensíveis de um obstetra que me violentou, arrancou de mim minha filha “a ferro”, depois de ter me colocado no papel de algoz de mim mesma, sob pena de ser a responsável se algo de errado acontecesse com a minha filha. Eu não soube lutar como ela, eu não fui tão valente!
Fui coagida a tomar uma analgesia que não desejava, me senti violentada quando o doutor enfiou as duas mãos em mim para “ajudar” a minha filha a fazer a rotação para descer pelo canal de parto, fui mutilada quando me fizeram uma episiotomia sem nem me perguntar se eu queria.
De repente, naquele relato amargo, eu me vi em um retrato emoldurado, vi meu rosto no dela, e me compadeci. Senti sua dor, e chorei com ela. Lágrimas de dor, lágrimas de desespero, lágrimas de perda, de luto, de tristeza. Roubaram-nos a dignidade, os direitos, e mataram lentamente a nossa alma.


Embora numa figuração menos atuante, muito mais submissa e menos informada, coagida e sem a voz e a força dela, que mesmo diante de um dos momentos mais horripilantes de sua vida lutou bravamente, eu me vi nela, eu fui ela, e eu senti a dor dela. Ela agora tinha um rosto e um nome, o meu rosto, o meu nome, e o de milhares de brasileiras que sofrem diariamente com a hostilidade dos profissionais nas maternidades brasileiras, que são violentadas, ridicularizadas infantilizadas, ofendidas e mutiladas. 

E se no caso Adelir eu pensava que a incoerência desse sistema havia chegado ao limite, me deparo com o depoimento de um médico frio, que depois de ter destruído moralmente e fisicamente à dignidade de uma mulher, ainda desabafa em rede social a chamando de surtada comedora de placenta, e se coloca na posição de vítima. Vítima de quem doutor? Da sua própria ignorância?

Pouco me importa se ela comeu placenta*** ou não. A placenta é dela, o corpo é dela, é direito dela. Isso nem vem ao caso. O que me importa é a tamanha dor que ela sentiu e deve estar sentindo, além da dor física, a dor mais profunda, à dor da alma ferida, dilacerada, mutilada, quase sufocada e morta. O que me importa é a forma como mais uma vez uma mulher foi massacrada por um sistema arbitrário e ultrapassado de obstetrícia, como esse episódio lamentável retrata a realidade atual de tantas mulheres dentro das maternidades.

O que me importa de verdade nesse momento é poder dizer a ela, que meu coração está com ela. A minha voz também é a dela, e a minha luta é por ela. Espero que ela “se ler” isso, possa sentir o meu abraço e o meu apoio, dizendo a ela: “Você é guerreira, é um exemplo de força e não está sozinha”.

Leia aqui o relato dela: http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2014/07/nao-ela-nao-e-uma-comedora-de-placenta.html

Leia aqui a notícia sobre o caso: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/07/1487814-maternar-mae-denuncia-violencia-obstetrica-em-hospital-particular-de-natal-rn.shtml


***Placentofagia
O ato de guardar a placenta para comer depois do parto tem crescido nos Estados Unidos. Em geral, tem ocorrido entre mulheres de classe média, brancas, casadas e com formação universitária. Os estudos científicos sobre os benefícios do consumo dessa membrana que revestem os fetos na barriga das mães não são muito vastos. A maioria dessas mulheres se baseia numa pesquisa divulgada pela revista científica “Ecology of Food and Nutrition”. Nos EUA, há até empresas especializadas em acondicionar placentas. Os estudos apontam para a presença de ferro, ocitocina e outros hormônios que ajudariam inclusive a reduzir o sangramento pós-parto.

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